Francisco Carlos da Silva, criador da Associação Esportiva e Cultural Kauê, atua há 20 anos na região
Agência Mural
11/10/2019 – 21:11
SÃO PAULO — Quem passa pela rua Nicolino Mastrocola, na Vila Corberi, Itaquera, zona leste de São Paulo, encontra muito mais do que casas. No chão, faixas vermelhas simulam uma pista de atletismo, enquanto atletas correm pelas ruas do bairro.
A pista foi criada por Francisco Carlos da Silva, 48, ou Fran Kauê, como é conhecido na vila onde funciona a Associação Esportiva e Cultural Kauê.
Ex-goleiro de futsal, Fran se apaixonou pelo atletismo no ano 2000. Participou de edições da São Silvestre, famosa corrida de rua realizada em São Paulo no final do ano e, atualmente, é competidor de ultramaratonas.
A pista feita com a ajuda de amigos tem cinco raias e 200 metros de comprimento. Ela simula o traçado oficial, que tem o dobro de tamanho.
O atleta dá treinos de atletismo para jovens, mas o espaço é aberto para pessoas de todas as idades. “Quero proporcionar para eles o mais próximo que eles vão encontrar quando estiverem dentro das pistas oficiais”, afirma.
Antes de começar os treinamentos, realizados em geral segunda, quarta e sexta-feira, às 19h, são colocados cavaletes nas duas pontas da pista para sinalizar os carros que passam pela rua com pouca frequência.
A pista não conta com permissão ou contribuição da prefeitura. “A Prefeitura não me atrapalha, essa é a maior ajuda que eles me dão”.
A ideia de fazer o traçado surgiu em 2001. Na época, ele levou o filho para competir na São Silvestrinha, prova mirim da São Silvestre.
“Chegando lá, uma garotinha falou que não sabia se ia correr ali porque ela nunca tinha visto uma pista de atletismo oficial. Me assustou uma garota de 6, 7 anos da periferia nunca ter visto uma pista”, conta Francisco.
Trajetória e o gol
A chegada ao atletismo veio após uma trajetória marcada por outras modalidades. Foi pelo esporte que Francisco conseguiu levar para casa o primeiro salário e ajudar a família. Filho de pais separados, Fran veio do Nordeste para São Paulo quando tinha 5 anos, acompanhado do irmão e da mãe analfabeta.
Na periferia de São Paulo, foi criado pela mãe, avó e tia, mulheres “tão pedra dura quanto o bairro”, brinca lembrando o significado da palavra tupi ‘Itaquera’.
Aos 16, começou a jogar futebol de salão pelo GR Cabral. Também praticava artes marciais. Após ter o primeiro filho, começou a trabalhar em uma rede de planos de saúde e prestou vestibular para cursar informática.
Na universidade, conquistou bolsas para jogar. “Participei de uma seletiva com 480 atletas para 12 bolsas no futsal”, conta. Como goleiro, atuou pelas equipes GR Cabral, Internacional, Unicsul, Mogi e encerrou a carreira no Suzano.
Com uma criança de 3 anos de idade, deixou de competir profissionalmente para cuidar do filho, Kauê, que dá nome à associação.
Também pôde realizar um sonho. Comprar uma casa para a família. Ele lembra que aos 12 anos quis parar de estudar para trabalhar e ajudar no aluguel. A mãe de Fran, com medo de que o filho fosse analfabeto como ela, impediu a decisão.
Foi necessário vender o carro e passar aperto para comprar o imóvel de um conhecido, que estava de mudança do bairro. “Minha família, literalmente, foi plantando raiz em Itaquera”.
Talentos
Em uma noite fria na capital, os jovens se aglomeravam antes do treino em volta de Rafael Soares, 26, um dos talentos que surgiram da A.E.C Kauê.
Ele exibe a medalha reluzente de bronze conquistada como guia durante os jogos Parapan-americanos 2019, realizado em Lima, no Peru, na corrida de 5 mil metros.
Rafael é uma das crias do projeto. Entrou com 12 anos e nunca mais parou. No começo, corria apenas por diversão. Hoje, atleta formado, participa de provas nacionais e internacionais.
“O Fran tem uma visão muito maior de tentar descobrir novas sementes aqui e tem muita gente boa. Tem tudo para sair bastante talento daqui”, ressalta o corredor.
Além das aulas de atletismo, a associação possui projetos voltados para a psicologia no esporte, alfabetização, incentivo à leitura, artesanato, esporte na terceira idade, entre outros.
Durante as Olimpíadas de 2016, atletas de outros países visitaram a sede. O projeto também foi objeto de estudo em um doutorado sobre “o esporte como elemento de transformação”, realizado na Dinamarca. Fran foi um dos corredores que carregaram a tocha olímpica naquele ano.
Após 20 anos de projeto, o próximo passo é conseguir uma pista de atletismo dentro do Parque Linear do Córrego do Rio Verde, localizado próximo de sua casa. O orçamento previsto fica perto de R$ 1 milhão, mas há dificuldade em encontrar investidores.
Entretanto, Fran se considera realizado e prefere que o projeto seja uma inspiração em outras quebradas. “Eu queria que a associação fosse um fator de multiplicação. Que ela pudesse chegar nos quatro cantos das periferias espalhadas pelo Brasil”.
* Everton Pires