Ex-segurança da Companhia toca violão nos trens e luta para regulamentar atividade; em SP, apresentações artísticas dentro dos vagões são proibidas por lei
Atualizado às: 01:00
SÃO PAULO, 22 jan (32xSP) – É nos vagões de trens do Metrô de São Paulo que Jefferson Antônio Guelfi, 58, encontrou seu novo meio de trabalho há um ano, logo que perdeu o emprego como consultor jurídico. Músico há 40 anos, ele decidiu tentar ganhar a vida tocando entre os trilhos.
Assim como ele, outros músicos também se reúnem ao fim das manhãs na linha 3–vermelha. Os instrumentos de percussão, clarinetes, violões e sanfonas são as apostas para sensibilizar os usuários e conseguir alguns trocados no chapéu que é passado sempre ao final das apresentações.
Tocar nos vagões é proibido pela Companhia do Metropolitano de São Paulo e os músicos apanhados pelos seguranças são obrigados a saírem da estação.
“Não tocamos sempre na linha vermelha, depende da fiscalização da segurança. Se formos colocados para fora, somos obrigados a pagar uma passagem novamente. Para mim, é ainda mais desconfortável, pois eu era colega de trabalho de muitos deles”, comenta Guelfi que, durante 14 anos, vestiu a mesma farda preta da segurança do Metrô.
“Saí para conhecer novas perspectivas de vida. Acredito, por experiência própria, que se os agentes tivessem essa atribuição a menos [retirar músicos dos trens], poderiam dar atenção maior a ocorrências de segurança pública e atender com mais eficácia os idosos”, ressalta.
Mayara Aprigio, 18, também encontrou nos vagões a chance de trabalhar com música. A estudante de canto faz dupla com Jefferson esporadicamente há cerca de um ano. “Eu comecei a tocar porque estava sem dinheiro para pagar o curso de fonoaudiologia na faculdade que cursava na época”, lembra.
“O melhor de tocar no Metrô está na energia que a gente troca. É maravilhoso você sorrir para uma pessoa e ela sorrir de volta, os elogios que recebemos dos passageiros e saber que estamos fazendo o dia dessas pessoas melhor. Um rapaz já saiu emocionado do vagão porque a música lembrou o pai dele”
Mayara Aprigio, música
Um show dentro do trem
São 11 horas da manhã quando Mayara e Jefferson se preparam para entrar no primeiro vagão do dia. O horário é escolhido devido ao fluxo menor de passageiros, o que permite que a apresentação seja possível e não incomode os usuários.
É após o sinal de fechamento das portas que começa o show. Jefferson se torna “Tony Guelfi”, seu nome artístico, e começa dedilhar as notas do violão que ecoam um sofrido “modão sertanejo”.
“Devia ser permitido tocar nos vagões. Isso é cultura, alegra as pessoas e lembra coisas e sentimentos bons”, comenta a passageira Mariza Carvalho, 69. Ela cochilava no momento da apresentação e acordou cantarolando emocionada.
“Às vezes estamos estressados, então a música faz bem, acalma. Eu acho um absurdo ser proibido. Acontecem coisas que precisam de muito mais atenção no Metrô, como abusos, violências e atrasos”, diz Cíntia Brandão, 48, que viajava em um dos vagões onde os músicos se apresentavam.
As apresentações duram o percurso de três ou quatro estações, e as músicas variam entre Tim Maia, Roberto Carlos e outros intérpretes da MPB.
Em um dos trens, após o término da canção, a dupla é ovacionada com uma salva de palmas que encobre a música ambiente do vagão. “Essa música foi colocada só para atrapalhar os músicos”, diz Guelfi, aos risos, em tom de brincadeira.
Ele se refere ao “Metrô+Música”, projeto que foi implementado em julho de 2018 e leva sonorização aos vagões das linhas 1–Azul, 2–Verde e 3–Vermelha. Quem administra a lista de músicas tocadas é o Instituto de Cultura e Cidadania (iCult), que recebe cerca de R$ 39 mil mensais pelo serviço.
Música por notas
Não é só de aplausos que vivem os músicos que tocam no Metrô. A maioria dos artistas ouvidos pela reportagem tem como principal fonte de renda o dinheiro recebido com as apresentações dentro dos vagões.
“Moro com a minha avó de 83 anos e sou eu quem sustenta a casa. Por dia, eu consigo ganhar de R$ 50 a R$ 70”, comenta Henrique Carvalho Silva, 23, que toca uma pequena escaleta e um violão nos vagões, de segunda a sábado.
Ele também se apresenta em eventos no bairro onde mora, na zona leste da capital. “Já trabalhei como estoquista e como telemarketing, mas desde os 13 anos sempre quis seguir no ramo da música”, conta o jovem.
O clarinetista Ricardo Rodrigues, 21, que toca há dois anos nos vagões, também encontrou em cima dos trilhos a chance de mostrar seu talento com o instrumento musical que aprendeu a tocar de forma autodidata – e que hoje é seu único meio de renda.
“Meu sonho é ser músico erudito e estudar fora do Brasil. Estou em situação financeira difícil. Recentemente comecei a morar com minha namorada e a maior renda é a das apresentações no Metrô”, revela Rodrigues, que fatura até R$ 1.900 por mês.
A dupla de músicos Jefferson e Mayara consegue até R$ 100 por dia. “No fim do mês eu consigo tirar de R$ 2.800 a R$ 3.000. Na minha idade, não tenho mais muitas oportunidades no trabalho formal. Meu sonho é poder exercer essa profissão com dignidade, liberdade e respeito”, comenta Jefferson.
Lei do silêncio
Embora seja fonte de renda para alguns músicos, tocar nos vagões de São Paulo é proibido com base na lei municipal nº 15937/2013, que veda o uso de aparelhos musicais ou sonoros no interior de veículos de transporte coletivo.
“Tocar não configura crime, contudo a lei prevê algumas sanções para quem a descumpre. Os instrumentos só podem ser aprendidos, e de forma momentânea, com intervenção policial e quando o indivíduo resistir às ordens dos agentes de segurança”, explica o advogado Rodolpho Andrade.
O Metrô de São Paulo informa, em nota, que a apresentação de músicos dentro dos trens é vedada “para não interferir na operação do sistema metroviário, bem como na circulação, comodidade e segurança dos passageiros”.
A companhia também ressalta a criação do projeto “Músicos de Rua”, que já recebeu a inscrição de cerca de 200 músicos. O projeto dá aos artistas a oportunidade de se apresentarem gratuitamente dentro das estações em locais pré-estabelecidos, mas fora dos vagões. Aqueles que participam recebem uma bolsa-auxílio de R$ 150, paga pela Secretaria da Cultura.
Para Jefferson, a oportunidade é boa apenas para quem quer divulgar o trabalho. “Não dá para ganhar dinheiro com isso. É preciso levar uma banda, instrumentos e as oportunidades são esporádicas”, afirma.
Ao contrário de São Paulo, na cidade do Rio de Janeiro as apresentações de caráter artístico estão permitidas desde setembro de 2018 nos vagões de trens e barcas. A lei sancionada permite que músicos, poetas e atores de teatro façam intervenções durante todo o período de funcionamento desses meios de transporte.
Vanessa Guelfi, 37, filha de Jefferson, foi para os trens do Rio de Janeiro há cerca de dois meses para conferir de perto como é trabalhar sem se preocupar com a segurança. Ela afirma que tem ganhado o dobro do que faturava nos vagões paulistanos.
As doações dos passageiros cariocas, contudo, têm que ser espontâneas. Os artistas não podem incomodar os usuários.
“As pessoas parecem ser mais receptivas à arte. Acredito que, pelo fato de os seguranças não retirarem os músicos dos vagões, os passageiros têm menos preconceito. Em São Paulo, quando você escuta nos alto-falantes para não dar esmolas aos pedintes profissionais, você se sente mal”
Vanessa Guelfi, música
Jefferson Guelfi espera que o exemplo do Rio de Janeiro seja seguido em São Paulo e tem tentado contato com parlamentares na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) para regularizar o trabalho dos músicos na Companhia.
“Temos um grupo que reúne artistas no WhatsApp. Sempre marcamos reuniões para conversar e articular quais serão os representantes dos músicos do Metrô na ALESP, e discutir cláusulas para um possível projeto de lei em São Paulo. Até o momento falamos com alguns deputados e apresentamos a lei do Rio de Janeiro. Um grupo se interessou, mas ainda não confirmaram nada. Esperamos que nossa causa seja apoiada”, finaliza.